Pink Bobblehead Bunny

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Cores de Marfim

Pequenos olhos azuis olhando para longe enquanto o sol brilha.

E assim ela senta-se toda a tarde no mesmo lugar.

A primavera é sempre muito chuvosa, mas o início do verão é quando começa a esquentar, o sol timidamente vai mostrando mais e mais seu brilho conforme a cada estação, sem ser ofuscado pelas nuvens. 

E como sua pelagem fica linda ao sol. Essa mesma que possui cores de marfim.

Tons escuros e claros se misturam uns aos outros, mostrando o quão suave e delicada é essa pequena criaturinha.

Lily e eu sempre nos sentamos na mesma praça, no mesmo parque todo início de verão. Eu amo pintar e ela ama assistir.

Assistir o que exatamente? Quem sabe o que se passa na cabeça desse pequeno serzinho.

Enquanto dou mais uma pincelada, ela boceja e se espreguiça, na sua habitual forma preguiçosa. Eu a olho por um breve segundo e ela me olha de volta. Mas logo em seguida, enfia sua cabeça entre suas patinhas e se embola como um pequeno tatu. Solto um riso e por um breve momento, paro o que estou fazendo para observá-la. Meu trabalho atual não me agrada, então resolvi  arrancar mais uma folha e fazer de Lily minha inspiração. Ela levanta uma orelha quando ouve o barulho da folha sendo arrancada da tela e abre os olhos por um segundo ou dois e depois fecha novamente.

Estendo minhas mãos em sua direção para observar bem o ângulo e me posiciono em frente a ela. Lily parece perceber minhas intenções e levanta a cabeça, acomodando-se na pequena almofada que está sob a grama. Com os olhos fixos em algum inseto ou animalzinho pequeno na árvore próxima, perfeito! Ela é naturalmente fotogênica, e muito esperta! É como se entendesse que está prestes a ser eternizada em uma grande tela branca que em breve será preenchida de cores.

Mas como farei a cor da sua pelagem? Confesso que nunca tentei pintar algo nesse tom, mas de repente não deve ser tão difícil.

Depois de quatro folhas arrancadas, alguns tons errados e diferentes combinações eu consegui o tom perfeito, mas é óbvio que algo tinha que acontecer, a tinta havia acabado! 

Merda” - pensei comigo mesmo. É muito injusto o amarelo e o branco acabarem logo agora.

Lily, espere um segundo que eu já volto! Não se mova! -digo como se estivesse falando com uma criança. Lily pisca suavemente para mim como se dissesse “Eu estarei bem aqui, não vou a lugar algum.” Ela sempre foi muito tranquila, desde os primeiros meses de vida. Agora está com dois anos.

Me apresso para a lojinha mais próxima que conheço, 16h provavelmente ainda está aberta.

– Sinto muito moço, mas o amarelo está em falta! – disse uma atendente morena, com os cabelos cacheados e olhos cor de mel que estava atrás do balcão da loja.

– É sério moça? Não tem no depósito, algo assim? –  pergunto desapontado.

– Sim, todas as cores estão catalogadas, e as que não constam é porque infelizmente já não estão no estoque.

Dou um suspiro decepcionado. Pode parecer besteira para qualquer outra pessoa, mas eu tenho algo comigo que se não concluir meu trabalho no momento em que estou inspirado, isso não volta. Ao menos não para a mesma pintura, talvez para uma outra quem sabe.

A atendente acho que percebeu meu rosto de decepção, pois logo em seguida indagou:

– Você precisa mesmo dessa tinta? É algo muito urgente?

– Bem… – coço a cabeça por um momento – Sim… e não. Acho que você não entenderia se eu explicasse, ou talvez me achasse um completo maluco.

– Talvez você explicando a situação eu possa ajudar? – disse ela com uma ponta de esperança na voz. Talvez ela realmente queira ajudar, ou só quer fazer uma venda mesmo.

– É minha gata Lily.  Eu estava meio que sem inspiração para pintar hoje e ela acabou trazendo isso à tona, então…

–  É você quem precisa da tinta? – indagou surpresa. – Eu pensei que era para sua mãe, irmã ou algo assim.

– Isso foi meio discriminatório, não acha?

– Oh, não, não, não foi isso que eu quis dizer! É que nessa cidade tão pequena é raro ver…

– Garotos que gostam de arte?

– É, mas por favor não se ofenda! 

– Não fique tão nervosa, eu apenas estava mexendo com você.

– Oh! – ela suspirou aliviada. – Me desculpe!

– Não precisa pedir desculpas! – dei um breve sorriso. – Enfim, acha que pode me ajudar com isso?

– Acho que sim! – ela colocou o dedo indicador sobre os lábios, pensativa – Sua gata é mais alaranjada ou amarelada mesmo?

– Ela é cor de marfim, sabe?

– Cor de marfim? Nossa, por que não disse antes?

– Você teria essa cor aqui?

– Não, infelizmente não. Mas sei como criar sem o amarelo! Me dê um segundo sim?

– Ham… ok?! – Cocei a cabeça um pouco atônito, enquanto a atendente desaparecia entre os corredores da loja.

A pequena loja era toda de madeira, contendo diversos materiais para arte. Tintas, pincéis, paletas entre diversos outros acessórios se espalhavam pela loja. Todas com um toque de antiguidade, o que deixava uma atmosfera bem nostálgica. Um pequeno relógio cuco na parede e uma roda d’água em miniatura no canto do balcão atraiam os olhares de quem adentrava no local.

– Achei! Só um minuto! – A voz da atendente ecoava do fundo do corredor.

– Claro, ainda estou aqui. –  respondi um tanto curioso. O que ela estava aprontando?

– Aqui! – disse ela se aproximando com uma tinta branca e uma outra a qual não consegui identificar.

– O que seria…

– Bege! – Disse ela me interrompendo. – Se você misturar ao branco assim… – disse ela pegando um pequeno recipiente vazio e misturando as duas tintas.

– Cor de marfim! –  exclamei surpreso. – Você salvou meu dia! – sorri muito satisfeito.

– Não há de que! – ela exclamou dando um pequeno aceno com a mão.

– Quanto fica as duas?

– É um presente!

– O que? Mas…

– Com uma condição!

– Qual? – Eu sabia que tinha algo estranho.

– Me deixe ver o quadro assim que estiver pronto, ta?

– Eu não costumo mostrar minha arte para muitas pessoas… Mas como você me ajudou, abrirei uma exceção. Mas só desta vez!

– Obaaaa! Prometo que não farei nenhum comentário desagradável novamente!

– Novamente?

– Você sabe… sobre meninos raramente gostarem de arte… – ela encolheu os ombros.

– Ei, esqueça isso, eu não me chateei, nem nada do tipo

– Ufa… bem, estou atrasando você, tenha uma boa tarde e boas pinturas!

– Não está não, você me deu uma grande ajuda. Obrigado, um bom trabalho pra você! – disse com um aceno.

– Menos mal! – ela sorriu aliviada. – Disponha! – disse ela retribuindo o aceno.

Quando voltei, Lily encontrava-se em sua posição de tatu bolinha com as patinhas cobrindo o rosto por conta do sol. Me posicionei no mesmo lugar de antes e ela ao perceber minha presença levantou novamente a cabeça, porém desta vez ficou olhando para mim.

Gata esperta.

Quando voltei a trabalhar em minha obra de arte, Lily não se moveu, nem voltou a sua posição habitual em que estava dormindo antes. As vezes acho que habita uma alma humana em seu pequeno corpinho, pois não é possível que um animal tenha tamanha inteligência.

Depois de três horas e meia concluí o trabalho.  E agora, uma versão maior da minha pequena Lily estava ali em minha frente, parada na tela, em sua melhor pose. Com toda graciosidade, charme e leveza que só ela possui. É claro, que a original é incomparável, mas eu devo admitir que esse é um dos melhores trabalhos que já fiz.

– Hora de nos recolhermos, não é meu pequeno tatu bolinha?

Lily levantou uma orelha e piscou para mim, em seguida correndo suavemente em minha direção, concordando. Quem não a conhecer, não irá acreditar se eu disser.

Lily saltou em meu ombro para irmos para casa, que não ficava muito longe dali, quando de repente um gritinho me fez quase pular de susto.

– Você é mesmo muito talentoso!

– Mas o que…. Você, a atendente da loja! – exclamei com um pulo quando a atendente do balcão da loja se aproximou de mim batendo palminhas. Lily também assustada, escondeu-se atrás da minha nuca, dentro do capuz do meu moletom.

– Maelie! – disse ela me corrigindo. – Desculpe, minha curiosidade não deixou eu esperar por tanto tempo! – ela fez um biquinho como uma criança quando apronta algo errado. – E você é?

– Não precisa saber agora. É um castigo por ter me seguido. – sorri vitorioso.

– Isso não é juuusto! – ela disse desapontada. – Então essa é a pequena Lily?

– Não se aproxime demais! – eu disse a detendo. – Ela não está acostumada com outras pessoas.

– Oh não, estou assustando todo mundo hoje! – Maelie disse desapontada.

– Não fique triste, deixe ela cheirar você! – a encorajei tirando Lily delicadamente da minha nuca e segurando em meu colo. – Lily, essa é a Maelie e ela não irá machucar você.

– Eu sou amiga, Lily! – Maelie disse enquanto esticava a mão devagar.

Lily ficou um pouco desconfiada, afinal Maelie é uma pessoa muito eufórica e animada,daquelas que falam alto com muito entusiasmo. Como eu e minha avó somos as únicas pessoas na casa, ela não está acostumada com tanta agitação.

– Tente falar baixinho com ela, acho que assim ela vai confiar em você. – disse enquanto acariciava Lily.

– Oi pequena Lily, tudo bem? Quero ser sua amiga! – Maelie dizia com um sussurro.

Lily foi cheirando a mão de Maelie. Primeiro um dedo, depois o outro, depois o pulso, até que de repente, começamos a ouvir seus pequenos ronrons enquanto encostava suas orelhinhas na palma de Maelie que quase pulou de alegria.

– Ela gostou de mim, ela gostou de mim! – Maelie dava pequenos pulinhos e gritinhos, o que fez Lily se assustar novamente e enfiar-se debaixo do capuz.

– Ah… – Maelie suspirou desanimada.

– Vá devagar, ela não está acostumada com tanta empolgação. – disse enquanto acariciava as orelhas de Lily que continuava escondida.

– Bom, eu não quero que ela fique com mais medo de mim, então já vou indo. Não moro aqui perto, então depois vai ficar muito tarde. – ela disse afagando a pontinha da orelha de Lily que a olhava ainda desconfiada.

– Tudo bem então Maelie, nos vemos por aí. – eu disse enquanto recolhia minhas coisas.

– Onde você mora?

– Ah, eu e Lily moramos aqui perto mesmo, logo ali naquela rua que desce. – apontei uma rua toda arborizada em frente a praça.

– Uaaau, aqui é muito bonito, você tem sorte de morar aqui! Ops quer dizer, você e a Lily. – Maelie cobriu a boca um pouco envergonhada.

– Não se preocupe, ela não ficou ofendida. E nem se desculpe tanto, você nos ajudou hoje. – sorri para ela.

– Fico feliz! – ela sorriu de volta.

– Até mais, Maelie. Nos vemos! – disse com um pequeno aceno.

– Sim, nos vemos! Até mais para vocês dois. – Maelie acenou de volta.

Segui meu caminho de volta para casa e Maelie seguiu na direção oposta. As estrelas começaram a aparecer no céu, uma a uma, e o sol já estava baixo no céu. Metade azul escuro, metade azul claro, uma visão bem bonita, diga-se de passagem.


Olhei para o quadro, depois olhei para Lily. Olhei para Lily, depois olhei para o quadro. Uma versão maior e perfeita dela. Lily admirava sua própria beleza com certa curiosidade, colocando as pequenas orelhinhas para trás e inclinando a cabeça vez ou outra. Queria saber o que se passa na cabeça dela às vezes.

Eu e Lily nos entreolhamos, olhamos o quadro mais uma vez e depois olhamos na direção em que Maelie havia ido. Acho que sabíamos o que fazer.

Virei na direção oposta e comecei a seguir Maelie. Ela caminhava lentamente, um pouco curvada para baixo, como se algo a deixasse triste. Será que eu disse algo errado? Não, não foi isso, ela já estava com um pouco desse semblante logo que cheguei na loja, antes de nós conversarmos.

Resolvi não perguntar para não importuná-la.

– Ei Moana! – chamei com um tom brincalhão na voz.

– É Maelie! – ela virou-se fazendo um biquinho, como se estivesse irritada. – Você não ia para a sua casa?

– Eu esqueci uma coisa! Na verdade, eu e Lily esquecemos, não é Lily?

Lily mexeu uma orelha em resposta.

– O que esqueceram? –  Maelie indagou surpresa e confusa.

– Isso é para você. Eu e a Lily resolvemos que deveria ser seu! – disse entregando o quadro.

– UAAAU! M-mas… – Maelie exclamou com um brilho nos olhos, mas seu grito fez Lily esconder-se novamente.

– Calma aí Moana!  – comecei a rir logo em seguida.

– Deeesculpe, é que isso é… nossa, por que???

– É um agradecimento! – sorri de leve.

– Mas, é a sua Lily…

– Eu já a tenho bem aqui. Mesmo quando ela não estiver, Lily está eternizada no meu coração para sempre, e isso nunca vai mudar.

– Uau! É verdade… – Maelie suspirou. – É um presente muito precioso, obrigada aos dois! 

– De nada, Moana!

– Maeeeelie!

– Você se parece muito com ela, sabia? – disse bagunçando seus cabelos e em seguida virando-me para voltar para casa.

Maelie ficou com uma expressão confusa encarando o quadro enquanto eu e Lily nos afastamos em direção a nossa casa.

Depois de caminharmos alguns minutos, ouvimos outro grito.

–  MOOOOOOÇO!

Quase pulamos de susto novamente.

– Que susto, Moana! Diga!

– É Mae… deixa pra lá. Me deixe ver a Lily de novo?

Fiquei um tanto surpreso com essa pergunta. Eu não sou uma pessoa de muito contato social, mas Maelie parecia ser uma boa pessoa.

– Ahn, eu vou pensar, ta bom??

– Ah vai, por favor! Lily, diga para seu dono deixar!

Lily mexeu uma orelha e piscou lentamente uma vez.

– Você é uma danada quando quer, Lily! – resmunguei.

– AHHH, eu sabiiiia! – Maelie deu pulinhos, eufórica.

– Tá bom, já que ela concordou, você pode. – disse rindo.

– Obrigada de novo! – Maelie sorriu

– Disponha! – sorri de volta.


Em seguida nos despedimos com um pequeno aceno e cada um seguiu seu rumo para casa.

Eu não sei se a verei de novo, não sei muito sobre sua vida, nem o que a deixava triste naquela tarde, mas o brilho nos olhos de alguém é o que faz muitas vezes seu dia valer a pena. Mesmo que você só tenha visto essa pessoa uma única vez.

Isso é ser humano, isso é ser empático com o próximo.

É no que eu acredito, sabe? E no que a Lily acredita também, claro.

E agora vejo minha pequena descansar, em sua almofada. Respirando calmamente, junto com cada batida de coração, lenta e tranquila.

E ao lado da cômoda, está o recipiente de tinta que usei esta tarde, que fez com que tudo isso acontecesse.

O recipiente que contém cores de marfim.

Dias simples, podem ser os mais memoráveis não é Lily?

E adormeço com esse pensamento, do que me aguardará no próximo dia.